Por CAETANO VELOSO //
Aeroportos são o que existe de mais abominável neste mundo. Ou pelo menos é o que eu achava há 14 anos, antes de perder o medo de avião. Não que 14 anos signifiquem tanta coisa assim para um homem da minha idade. Passei a maior parte de minha vida odiando aeroportos e sofrendo em aviões. Eu sofria nos voos por esse medo irracional que não se abala com as estatísticas. Mas nunca vinculei meu nojo de aeroportos a esse medo. Estava convencido de que o mau gosto discreto — cores neutras, formas impessoais — é que me exasperava por atentar contra minha inteligência e sensibilidade. Meu amigo Gilberto Gil me dizia que ele, ao contrário, adorava aeroportos: as horas mortas em saguões lhe pareciam uma oportunidade para meditação. Eu muitas vezes comentei com ríspida zombaria esses arroubos de otimismo místico do meu camarada.
Mas, sem que tivesse chegado a comunicar-lhe (com o devido pedido de desculpas por décadas de esnobismo), eu próprio, depois que perdi o medo de avião, passei a experimentar esse transe tranquilo em frente a guichês de check-in, sentado a um balcão tomando milk shake, lendo revistas opiniosas em bancos de fórmica e metal laqueado. Mesmo em aeroportos cheios, cheguei a me sentir no céu, encostado a uma pilastra cilíndrica recoberta de mármore branco. Custei a admitir que isso estava se dando. E mais ainda que estava relacionado com a ausência de medo de voar. Perdi o medo de avião ao fim de uma crise terrível que nunca me consegui explicar. Quando meu filho menor tinha nascido havia poucos meses, voltei do teatro onde estava fazendo um show com canções da América Espanhola e, tentando dormir, tomei a outra metade do Lexotan 6mg que eu tomava todas as noites ao deitar. Não era nada frequente que eu fizesse isso. Desde menino, sempre reagi mal até à ideia de tomar remédio para dor de cabeça: se eu tomo o Melhoral e não sinto a dor de cabeça, isso não quer dizer que não estou com dor de cabeça, apenas que não a estou sentindo.
O que me parecia não apenas temerário do ponto de vista do cuidado com a saúde como moralmente duvidoso. Mas, depois de ler por mais tempo do que o habitual e não sentir nenhum aviso de que seria possível conciliar o sono, resolvi tomar os 3 mg que, em forma de meia-lua inteira, estavam sorrindo para mim da cartela prateada. Tomei- os e esperei o efeito bater. Ao fim de poucos minutos algo bateu. Muito forte e fundamente bateu. Não uma onda de paz e sono, mas um baque surdo e escuro no coração da minha vida. Uma carga repentina e indescritivelmente intensa de tristeza, medo, raiva, impaciência, desgosto.
Eu conseguia pensar que era inimaginável que alguém pudesse sentir algo assim. Minha mulher estava dormindo. Em circunstâncias normais, quer dizer, em circunstâncias meramente anormais (um mal-estar, uma barata saindo por debaixo da porta do banheiro, um ruído no mato junto à sacada que dava para o mar), eu a teria chamado logo — e sem culpa, pois eu a sabia capaz de acordar, resolver o problema para mim e voltar a dormir em pouquíssimo tempo. Nosso filho recémnascido dormia com o irmão cinco anos mais velho no quarto colado ao nosso, para que ela pudesse atendê-lo prontamente, caso ele acordasse com fome, com sede ou com dor na barriga. Mas tal como estavam as coisas, não havia nem a mais remota hipótese de eu a acordar: eu não saberia o que lhe dizer, eu não aguentaria o teste de me defrontar com ela, eu nem sabia o que era tudo o que havia — ela ao meu lado, aquele quarto, aquela casa, nossos filhos, minha vida — em face do inferno que era minha mente. Lembrei-me, é claro, das bad trips com lança perfume, maconha e ayahuasca que eu tinha experimentado em minha juventude. Julguei que essas reações (e outros sintomas, como os rituais mentais em que me viciara desde a adolescência, as superstições que eu criava sem querer e sem cessar, a hipocondria que me fez sofrer de terríveis doenças que se provavam imaginárias) eram o indício de que tudo chegaria ali, àquela miséria absoluta e irrevogável em que me achava. Não consegui dormir mais, tive certeza de que minha vida tinha acabado e, quando minha mulher acordou, contei-lhe o que pude sobre o desmesurado acontecimento. Ela disse as palavras menos piegas que alguém poderia dizer numa ocasião dessas, esforçandose para desmistificar minha angústia. O fato é que comecei a aprender a conviver com a nova situação: fiz o show à noite e, de volta ao Rio, procurei meu médico, que me disse que eu não ficaria louco, me mandou voltar a fazer análise (eu tinha parado fazia bem uns 12 anos), e me receitou Rivotril (0,5 mg), medicação cuja caixa custava R$1. Voltei à análise. Com isso e o Rivotril, fui voltando ao normal. Nunca mais fui o mesmo. Mas, se é exasperante que eu não tenha resposta para o que se passou comigo — um choque hormonal devido à idade, uma percepção do erro essencial da minha vida, uma disfunção química no sistema nervoso central, a intuição de grandes catástrofes que vêm se armando acima da cabeça da Humanidade — também é certo que muitas coisas mudaram para melhor. O que não mata engorda — e, ao fim do processo, sem que me desse conta de quando, passei a entrar em aviões sem temer nada além da revista idiota que comprei.
Em Congonhas, hoje, lembrei isso tudo e pensei em “A ilusão da alma”: Eduardo Gianetti sobre a filosofia sugerida pelos achados da neurociência. Todos devem ler.
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